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Se correr o bicho pega se ficar o bicho come

Em minhas visitas à ocupação do Movimento Sem-Teto do Centro fui tomando contato com os moradores e sua situação, com os artistas envolvidos e as temáticas e reflexões pelas quais estávamos todos atentos. De cara me vieram duas vontades: realizar um trabalho plástico e oficinas (de desenho, pintura, malabarismo e o que mais pudesse oferecer).

Então formulei um trabalho plástico de uma instalação nos primeiros lances de escada na entrada da ocupação na Avenida Prestes Maia. Além do mau cheiro, particular desta área, que nos remetia aos dejetos humanos, alguns degraus desta escada estavam quebrados revelando uma camada mais profunda na estrutura do prédio, como a carne exposta de uma ferida. O trabalho seria fazer brotar desta “ferida” um material amarronzado por seu brilho dourado e que escorresse pelos degraus. Uma alusão à preciosidade do fluido vital se esvaindo por entre fendas, desperdiçando riquezas, acumulando-as como dejetos, por indiferença e descaso.

Reflexões acerca da comunicação da arte que criaríamos naquele contexto específico, a necessidade de que nossas ações fossem feitas para eles, e a vontade de transformação através de nossas ações, me fizeram questionar minha vontade artística. O formalismo de meu trabalho, regido pelas noções estéticas e conceituais de minha época me pareceram frágeis e transitórias demais para tamanha vontade comunicativa e transformadora. Então ao invés de realizar a instalação decidi vivenciar o espaço e a comunidade buscando estar aberta a interagir com as necessidades que se apresentassem, na meta de descobrir qual seria o trabalho requisitado por eles e que eu poderia oferecer. Ou ainda, na vontade de ser eu, e não a obra, que os levasse ao caminho da descoberta e aproveitamento de suas riquezas. Me transformei então numa artista/presente. (…) E foi assim, nesse jogo da vida, que a primeira ação com os moradores e se fez presente, e as primeiras linhas foram escritas, neste caso buscando as linhas retas.

Em outro momento como incentivadora, crianças moradoras no 9º andar do bloco b, ao reclamarem de ação em seu andar, desenharam e pintaram um jardim na parede ao lado da escada, com árvores de natal e presentes, como é costume desta época, para Mainá sua grande realização foram os pássaros que pintou, para mim sua grande realização foi a filmagem que fez de sua casa, de seu mundo incluindo a si mesma no reflexo do espelho. Colhi, em minha peregrinação, depoimentos e demandas diversas, e o conhecimento de como a ação artística, nesta comunidade, reverberava e se transformava por entre todos nós.

Encontrei quem estivesse refletindo profundamente sobre sua vida por ter visto e enxergado tantas outras formas de pensar; escutei críticas de moradores que me afirmaram que também o conceito de nossa ocupação fora discutido a assimilado por eles; recebi pedidos de moradores que ainda demandavam de nossa ação mostrando que, apesar do número monstruoso de artistas participantes, muitos mais eram desejados e sim, de forma mais pessoal. Fui requisitada várias vezes a realizar trabalhos em locais ainda não intervindos; (…) Outra questão, que me ficou clara (inclusive através dos atritos ocorridos), é que este caminho traçado pela nossa ação junto ao MSTC, por se tratar de um diálogo direto com uma comunidade é a forma mais rica, democrática, não invasiva e produtiva no ânimo e na alma destas ou de quaisquer outras pessoas, pois não se tratam de especulações e teorias mas de uma realidade na qual o artista está presente, aberto ao público, e responsável por sua ação.


Luciana Costa

São Paulo, janeiro de 2004.

“Arte e Cultura no Movimento Sem-Teto do Centro, 2003”

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